segunda-feira, agosto 30, 2004

Qual será o meu?

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Há muitos tipos de corações. Há corações pequenos e tímidos, há corações grandes e abertos, há corações onde é preciso meter requerimentos de papel azul e selo de garantia para abrirem as portas, e outros, cheios de janelas, frescos e arejados. Há corações com trancas, segredos e sistema de alarme que são como cofres de bancos. Corações sombrios e desconfiados, com fechaduras secretas e portas falsas. Corações que parecem simples, mas quando se entra lá dentro, espera-nos o mais perverso dos labirintos. E há corações que são como jardins públicos, onde pessoas de todas as idades podem entrar e descansar. Há corações que são como casas antigas, cheios de mistérios e fantasmas, com jardins secretos e sotãos poeirentos, carregados de memórias e recordações e há corações simples e fáceis de conhecer, descontraídos e livres, sempre em férias como tendas de campismo. Há corações viajantes, temerários e corajosos, como barcos à vela que nos parecem bonitos ao longe, mas que nos deixam sempre na boca o sabor amargo de nunca os conseguirmos abarcar... Há corações missionários, despojados e enormes. Há corações que são paquetes de luxo, onde o requinte é a palavra-chave para baterem... Há corações que são como borboletas e voam de um lado para o outro sem parar, numa pressa ansiosa de viver tudo antes que a vida se acabe... Há corações que são como os elefantes do Zoo, muito grandes, pacíficos e passivos que aceitam viver limitados pelos outros e que até tocam o sino se os tratarmos bem e lhes dermos mimos e corações aventureiros, sempre prontos para partir em difíceis expedições e se ultrapassarem a si mesmos. Há corações rebeldes e selvagens que não suportam laços nem correntes, corações predadores que só sobrevivem se caçarem outros corações, que correm tão depressa como chitas e matam como leoas, e depois há os corações gnus, que sabem que vão ser caçados mas não fogem ao seu destino... Há corações que são como rosas, caprichosos e cheios de espinhos e outros que são como campaínhas, simplórios e carentes, sempre a chamar por afecto. Há corações que são como girassóis, rodando as suas paixões ao sabor do brilho e da glória e corações como batata-doce, que só crescem e se alimentam se estiverem bem guardados e escondidos debaixo da terra. Há corações que são como pianos, altivos e majestosos, onde só tocam os que possuem a arte de bem seduzir. E corações como harpas, onde uma simples festa provoca uma sinfonia... Há corações incondicionais que vivem tão maravilhados em descobrir a grandeza de outros corações que às vezes se esquecem de si próprios. Há corações estrategas, que batem ao ritmo de esquemas e planos, corações transgressores que vivem para amar clandestinamente e só sabem desejar o proibido e corações conservadores, que só se entregam quando tudo é de acordo com os seus padrões e valores. Há corações a motor, que vivem só para o trabalho e corações poetas que só se alimentam de sonhos e ilusões. Há corações teatrais, para quem a vida é uma comédia ou uma tragédia e corações cinéfilos, que registam a beleza de cada momento em frames de paixão... Há corações duros como o aço, sem arritmias, onde nada risca e faz mossa e corações de plasticina, que se moldam às formas dos corações que amam. Há corações de papel, bonitos e frágeis, que se amachucam facilmente e desbotam à primeira lágrima, há corações de vidro que, quando se estilhaçam nunca mais se recompõem e corações de porcelana que, depois de se partirem, ainda sabem colar os destroços e começar de novo. Há corações orientais, espiritualizados e serenos e corações ocidentais, hedonistas e ambiciosos, corações britânicos onde tudo é meticulosamente arrumado segundo costumes e convenções e corações latinos, que batem ao som da paixão e da loucura. Há corações de uma só porta que são como grandes casas de família e outros de duas portas, uma para a sociedade e outra para a intimidade. Há corações que são como conventos, silenciosos e enclausurados e outros que são como hóteis, onde se paga o amor sem amor, escandalosos e promíscuos. Há corações parasitas, que vivem do afecto dos outros, sem nada dar e corações dadores que só são felizes na entrega. Mas há ainda uma outra espécie de corações, os corações hospedeiros, que sabem receber e fazer sentir os outros corações como se estivessem em casa, que dão e aceitam amor sem ser fixarem, que tratam cada passageiro como se fosse o último, enquanto procuram o seu coração gémeo, sempre na esperança secreta e nunca perdida de um dia deixarem de viajar e sossegarem para a vida...
Margarida Rebelo Pinto - Corações ao alto

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